Por Rowena Borralho M. Lacerda e Mozart Lacerda Filho

Das paisagens exóticas ao encontro com culturas ancestrais 

  

Parece mar, mas não é. É um lago imenso, situado na Cordilheira dos Andes, cerca de 4 mil metros de altitude, sendo o mais alto lago navegável do mundo. De uma margem não se enxerga a outra, mas é possível ver ilhas, flutuantes ou não, e comunidades que vivem dependentes de suas águas há centenas de anos. Durante a navegação, pode-se ver ora o Peru, ora a Bolívia, já que o lago é, também, uma fronteira natural entre os dois países.  

Diz o mito que ali surgiram os Incas, responsáveis pela construção do maior império da América pré-colombiana. De acordo com essa narrativa, há milhares de anos, Viracocha, o criador do Universo, deu vida a dois filhos, Mama Oclo, filha da Lua, e Manco Capac, filho do Sol, e lhes abrigou nas terras abundantes banhadas pelo Titicaca. Não resta dúvida de que a opulência do império combine bem com a riqueza do lugar que teria sido o berço da civilização inca. 

Pudemos ver essa abundância de perto. Saímos bem cedo do porto de Puno, cidadezinha charmosa e muito festiva (não por acaso é conhecida como a capital do folclore peruano), para o nosso passeio de um dia inteiro pelo Titicaca. O clima varia bastante, e os níveis de radiação são altos, devido à altitude, então vivemos todas as estações do ano, do frio seco ao calor escaldante com formações de nuvens de chuva, no breve período de 7h às 18h. Daí o inusitado de três blusas de frio até as 9h e um traje de banho a partir das 13h. Divertido e lúdico o “traje cebola”, se estivermos preparados, com bastante água e protetor solar.  

Durante a navegação, a paisagem muda bastante. Passamos por um estreito canal margeado por juncos nativos, chamados totora, até um ponto onde temos a sensação de mar aberto, a caminho das pequenas ilhas flutuantes, onde vivem os Uros, e depois de outra ilha, extensa e montanhosa, onde vivem os taquilenhos. Poucos quilômetros os separam, mas as culturas desses dois povos são, em absoluto, distintas, embora tenham algo em comum: o interesse em preservar hábitos seculares de seus ancestrais.  



A nossa primeira parada é feita por um convite entusiasmado. Mesmo a longa distância, conseguimos avistar pessoas com roupas coloridas, à beira de pequenas ilhas flutuantes feitas de junco, acenando, sorridentes, para nos convidar a descer e conhecer a história de seu povo e, também, seus trabalhos artesanais. Estes são os Uros, comunidade que vive, sobretudo, da pesca e do turismo, em dezenas de pequenas ilhas. Em praticamente todas elas, habitam poucas famílias, entre três e seis, que se dedicam quase integralmente à recepção de pessoas do mundo inteiro interessadas no exotismo de seus hábitos. Notamos que a ilha é preparada para receber os grupos, desde a organização do espaço, às ações sincronizadas do líder e das mulheres, que nos apresenta a ilha e os trabalhos artesanais, respectivamente. Desembarcamos com pouco mais de trinta pessoas, de diferentes origens, América, Europa e Ásia. Todos nos sentamos em um longo banco feito de totora e acompanhamos as explicações de como as ilhas são construídas e de como é a vida naquele pequeno espaço. Enquanto isso, mulheres e crianças se organizavam para nos apresentar objetos muito coloridos feitos de junco, além de belíssimas peças tecidas por elas, como mantas, capas de almofadas e bolsas.  

O líder explicou ao grupo que, a cada dois meses, o piso da ilha precisa de uma nova camada de totora, pelo fato de a água deteriorar as camadas submersas e haver risco afundarem, caso não haja renovação dos juncos. Conta-nos também que a vida dos Uros nas ilhas flutuantes tem origem em perseguições da comunidade indígena, antes mesmos da existência dos Incas. Não havendo a necessidade de serem ancoradas, podem levar seus habitantes a lugares longínquos. Muitos Uros, aliás, optam por viver longe de Puno e, portanto, longe dos turistas e das possibilidades de acesso à cidade. Essas pessoas têm a alimentação baseada em aves, ovos e peixes e conservam ainda mais fortemente os costumes ancestrais. 

Após apresentações, explicações e compras, fomos convidados a uma experiência diferente: velejar, em barcos de junco, até uma ilha em que há um Café, onde mais se toma o famoso chá de folhas de coca, para amenizar os efeitos da altitude, algumas lojas e um restaurante. Depois de uma breve parada, chegou a hora de seguirmos viagem até Taquile, a segunda maior ilha do Titicaca, com mais de 8.000 metros quadrados de área.  


Taquile é uma ilha de cenário paradisíaco, contornada por praias banhadas pelas águas cristalinas do Titicaca, que podem ser apreciadas no embarque e no desembarque e, também, do alto das montanhas.  

Ao chegarmos à ilha, avistamos uma longa escada, não muito íngreme, que subimos a fim de chegarmos ao local onde acontecem as apresentações folclóricas e onde há o restaurante, bem decorado com os tecidos coloridos produzidos na ilha e com uma vista exuberante da ilha e do lago.  

Seja pelos modos de vida, pelas práticas econômicas ou pela arquitetura, notamos representações de momentos diferentes da história local, da era pré-inca à colonial. Por ser localizada distante das ilhas flutuantes dos Uros e mais distante ainda de Puno, preserva através da responsabilidade dos anciãos, a cultura secular. Os habitantes do lugar (aproximadamente 2.000 pessoas) se sustentam dos animais que criam, da agricultura, principalmente das plantações de tubérculos e grãos, e da venda de artesanatos, com destaque à tecelagem, a arte tradicional dos taquilenhos.  

A comunidade preserva a sua língua, o quéchua, falada nos Andes, antes mesmo dos Incas, mantendo isolamento do mundo exterior, senão pelo encontro com turistas, por não haver ali energia elétrica e acesso a meios comunicação. Comercializam, ainda por escambo, com os Uros e outras comunidades ao longo do Lago. 

Um dos pontos altos da visita é, sem dúvida, conhecer traços particulares da cultura dos taquilenhos, como suas danças, suas produções artesanais, seus rituais. E há muitas curiosidades nesse encontro, como ver as pessoas se cumprimentarem trocando folhas de coca e reconhecer estado civil dos homens a partir dos gorros que usam. Vale lembrar que os “chullos” são tecidos por eles mesmos e que, conforme suas habilidades têxteis e criatividade, podem ser escolhidos ou não para o casamento.  As mulheres se dedicam, principalmente, ao feitio de tecidos e à criação de ovelhas. 

Após o passeio pela parte mais alta da ilha, os grupos se acomodam no espaço agradável e bem mais fresco do restaurante, para aproveitarem os pratos artesanalmente preparados. Sopa de quinoa acompanhada por uma espécie de biscoito de entrada, peixe assado acompanhado por batatas e salada de prato principal: as especialidades da casa servidas aos turistas, que se intensificaram em número a partir da década de 1980.

Pouco depois do almoço, chega a hora de seguirmos de volta a Puno, mas levamos para sempre as imagens desse povo tenaz que, não apenas segue, mas exala pelos poros o mantra quéchua "Ama sua, ama llulla, ama qhilla", que significa “Não roube, não minta, não seja preguiçoso".  


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