Por Ilcéa Borba Marquez


Quando você entra na Catedral de Santarém/Pará - dedicada à Nossa Senhora da Conceição, logo é atraído pelo belo crucifixo de ferro fundido, em tamanho natural, ereto, sobre o altar. Uma bela imagem, de um realismo impressionante, cuja característica marcante podemos nominar como “O Milagre da Vida”, pois normalmente “O Cristo Crucificado” é uma representação da morte, com a face do Redentor caída para direita significando sua morte, mas o que Von Martius queria testemunhar era a dádiva alcançada através da Divina Providência na manutenção de sua própria vida, num quase naufrágio vivido durante tempestade, velejando pelo rio Amazonas. Este tem a cabeça levantada, sua bela fronte erguida para o alto, os músculos do pescoço retesados pelo esforço, os olhos súplices mirando os céus, enquanto dos lábios doloridos parecem brotar aquela interpelação ao Pai: - Meu Deus, Meu Deus, por que me desamparaste? 

Essa bela imagem tem sido o ponto alto de visitas turísticas dos que passam por Santarém, sejam estrangeiros ou não, naturalistas ou artistas e, mesmo intelectuais, todos comparecem à catedral para admirar a obra, reconhecendo nela o fato histórico dos naturalistas bávaros, estudando o meio ambiente nacional e, de alguma forma, se tornando admiradores e podemos mesmo dizer apaixonados pela riqueza e diversidade encontrada. Von Martius se tornou muito amigo do Brasil e do Imperador – D. Pedro II, recebeu incentivo e doação para elaboração e publicação de sua tese “Viagem pelo Brasil” de Spix e Martius – Editora Itatiaia, 2019 ainda hoje sendo reeditada. Em sua chácara de Dusseldorf, possuía bela coleção de palmeiras do Brasil e quando morreu, aos 74 anos de idade, teve sua tumba recoberta pelas palmas das suas queridas palmeiras brasileiras. 

Na comitiva da Imperatriz Leopoldina vieram vários cientistas e dentre eles Von Martius – membro da Academia Real das Ciências de Munich, que durante os anos de 1817 a 1820, por ordem de Maximiliano José (Rei da Baviera) fez viagem cientifica pelo Brasil para estudar e conhecer as espécies nativas da flora brasileira. Este era o Novo Mundo, que deveria ser analisado também cientificamente pela ciência do Velho Mundo para ser mais bem aproveitado. Dessa viagem resultou teses e publicações hoje à disposição de todos. 

Voltando à imagem do “Cristo Crucificado” de Von Martius erigido sobre o altar da Catedral de Santarém/Pará, dedicada à Nossa Senhora da Conceição, vemos ao lado  a seguinte inscrição, também em ferro e letras em relevo, contendo identificação e procedência da obra: “O Cavaleiro Carlos Fred, Phil, de Martius, Membro da Academia R. das Ciências de Munich, fazendo de 1817 a 1820, de ordem de Maximiliano José, Rei da Baviera, uma viagem cientifica pelo Brasil, e tendo sido, aos 18 de setembro de 1819, salvo por misericórdia divina do furor da ondas do Amazonas, junto à Vila de Santarém, mandou, como monumento de sua pia gratidão ao todo poderoso, erigir este crucifixo nesta igreja de Nossa Senhora da Conceição, no ano de 1846.” Por ela se verifica que o famoso temporal que levou o jovem Martius (tinha 25 anos na época) a prometer a imagem do Crucificado à igreja da vila tapajônica, teria ocorrido em dezoito de setembro de 1819, em águas amazônicas, junto à Vila de Santarém. Em sua passagem por Santarém, sentiu-se em eminente naufrágio e, naquele momento, pediu proteção aos céus e fez promessa à Divina Providência de uma doação à nascente paróquia de Santarém. É perfeita a imagem da dor e sofrimento físico e moral, capaz de infundir aos mais empedernidos corações, sentimentos de compaixão e piedade, de contrição e de fé, conforme, aliás, o desejava Martius. 

“Fundida em 1846, em uma das muitas oficinas especializadas de sua pátria, a estátua, ao que se diz, é reprodução perfeita de um dos famosos “Cristo na Cruz”, devidos ao pincel ou ao buril do celebre gravador, pintor e escultor de Nuremberg, Albert Durer (1471 – 1528)” Santos, Paulo Rodrigues – Tupaiulândia – Santarém/Pará. 

Este mesmo autor – Santos, Paulo Rodrigues – traz as próprias palavras de Von Martius sobre o “Cristo Crucificado”. Vejamos: “A obra saiu excelente e a contemplei com profunda emoção, pensando no modo pelo qual só por um milagre, fui salvo do Rio Amazonas. Se a contemplação desse Crucifixo em alguns devotos despertar uma piedosa comoção, terei feito alguma coisa pela raça americana à qual sinto nada mais poder dedicar senão votos piedosos.” E acrescenta: “Há muitas pessoas, católicas e protestantes, que não sabem como se pode desenvolver no cérebro e no coração de um naturalista a ideia do Salvador do Mundo, a ponto de ser base de sua existência espiritual; a isso se chama filosofia do século XIX”. 

A leitura do livro: “Viagem pelo Brasil 1817 – 1820” de Spix e Martius, nos dá oportunidade de acompanhar todos os percalços de uma expedição ampla e profícua dos naturalistas que acompanharam a Imperatriz Leopoldina em sua chegada ao Brasil, com especiais encargos de dar lume às riquezas naturais americanas, quebrando o cerco e fechamento verificado até então. Assim iniciaram viagem pelo território brasileiro, recolhendo espécies da flora e fauna, como também curiosidades etnográficas, notícia minuciosa sobre fatos vividos e verificados e posteriormente, de volta à pátria, preparar exposições e teses científicas. Uma viagem ao desconhecido, contando com o apoio imperial e capacidade própria de enfrentamento das diversas situações inusitadas. Muitas vezes foram chamados pela população local para resolver problemas de saúde e administrar medicamentos em várias situações. 

Quando terminou a pesquisa e já de volta ao seu país, Von Martius escreveu: “... Dentro em minh’alma, bendizia eu o século futuro, que verá a mais majestosa caudal da terra, habitada por homens livres e felizes, e dei as mais ardentes graças ao Ente todo de amor, que me havia guiado através de tantos perigos, protegendo-me acima e dentro desse rio a cujas águas amarelas de novo me entreguei.” Essas palavras revelam o significado dessa experiência em solo brasileiro distante e diferente da conhecida pátria mostrando-nos quão fragilizados estavam e quão reconfortante seria sentir a proteção divina amparando-os durante todo o tempo.

Desenho de Bruno Oliveira