Em Uberaba, mulheres negras denunciam racismo, falta de acesso a cuidados de saúde e oportunidades, mas revelam suas estratégias de resistência

Jornalista Juba Maria


Pretta Moreno no palco

“Eita mundo véio sem porteira, que basta um dedo de prosa pra se chegar assim faceiro, às veiz amargo, às veiz cabreiro e assim vai tecendo, enredando, se fazendo”, diz a narradora de “Caliandra, a flor mais bela do cerrado”, texto de teatro escrito por Pretta Moreno, uma das mais destacadas atrizes da Uberaba atual.

Peço, então, licença à Caliandra, representando aqui todas as mulheres negras, para iniciar este texto, tecendo falas e enredando histórias, pois a vida de mulheres negras importa e não podemos aceitar que continuem morrendo em decorrência de uma estrutura social racista. Apesar dessa consciência, é preciso dizer que sou uma mulher branca, filha de Vergínia, neta de Antônia, escrevendo uma matéria sobre mulheres negras, o que é, ao mesmo tempo, um desafio e uma contradição da qual não pude declinar.

Aceitei o desafio sob a condição de situar minha branquitude, trazer referências próprias das africanidades, além de destacar a necessidade de que jornalistas negras sejam escaladas pelos meios de comunicação. Afinal, como ensina a jornalista e militante negra Agnes Maria, “não ser racista não é o suficiente”. A compreensão do que é racismo estrutural, segundo ela, é de extrema importância e urgência para que essa conscientização possa acontecer no meio jornalístico.


Agnes Maria

“Ou, vamos continuar aceitando a ausência de profissionais negros nos espaços de trabalho da comunicação e consequentemente, a reprodução de um olhar racista na construção das informações’, explicou. Agnes, uma das principais jovens lideranças negras de Uberaba, é também quem compartilha, através das lives e cursos que organiza, os diversos saberes da filosofia africana.

Começo então essa roda, oferecendo o relato de Márcia Moreira, filha de Mariza e neta de Maria. Doutora em Letras e professora do Instituto Federal do Triângulo Mineiro, Márcia foi vítima de um lamentável e criminoso episódio ocorrido no início de agosto durante a roda de conversa virtual “Episódios de vidas negras: leituras sobre o racismo a partir do filme American Son”. O evento era apenas o primeiro de uma extensa programação prevista para ocorrer naquele mês, mas que acabou cancelada em razão do ocorrido.

Na declaração feita à Polícia Federal, Márcia descreveu a violência racista e sexista que sofreu: uma música de ódio ao povo negro e imagens de um órgão sexual masculino foram algumas das formas de ataque. Márcia relatou ainda, em detalhes, como ficou psicologicamente abalada durante e após o ocorrido: a visão embaçada, a voz embargada e a ânsia de vômito. À noite, não conseguiu dormir, pois "chorava e recordava de todas as vezes em que minha voz foi interrompida por causa da minha cor", disse. “Eu não conseguia respirar direito”.


Márcia Moreira


Mas, não foi apenas isso. A professora revelou ter tentando manter-se calma, mas, por dentro, estava aterrorizada com as palavras do chat. “Me preocupei com os alunos e as alunas que assistiam. Alguns eram negros e menores de idade”, disse. A professora disse ter ficado atenta nas mensagens por temer que fossem direcionadas aos alunos também.

Diante de fatos como esse, vale a pena citar o saber de Sobonfu Somé, escritora citada por Agnes Maria em suas lives. Sobonfu, autora de “O espírito da intimidade”, buscou ensinar as possibilidades de relacionamento, de acordo com a espiritualidade africana. Entre tantas belezas escritas por Sobonfu, que morreu em 2017, aprendemos que o espírito - ou força vital - orienta nossos relacionamentos para o bem. “Seu propósito é nos ajudar a ser pessoas melhores, a nos unir de forma a manter nossa conexão, não apenas com nós mesmos, mas também com o além. O espírito nos ajuda a realizar o propósito de nossa própria vida e a manter nossa sanidade”, escreveu.


Sobonfu Somé


Espero, assim, que a força vital deste texto seja capaz de despertar em todas as leitoras a necessidade de sermos antirracistas, especialmente se considerarmos as disparidades - ainda mais marcantes em tempos de pandemia. Disparidades essas, tão fortemente apontadas, não apenas por Agnes e Márcia, mas também por mulheres como Camila, Débora, Vanessa, Pretta e Thais, ouvidas, em formato de roda, para a redação deste texto.

Entre elas, Camila Silva é a jovem negra de voz imponente responsável pelo projeto audiovisual intitulado “Vidas negras importam - Diga não ao racismo”, com edições lançadas em julho e agosto, trazendo depoimentos de dezenas de pessoas. Inspirada na americana Alice Walker, autora de A Cor Púrpura (1982), Camila, que já foi compositora de músicas evangélicas, parece dialogar com o elemento “terra” tal como apontado por Sobonfu em “O espírito da intimidade” enquanto responsável por “nosso sentido de identidade, nosso pé no chão e nossa habilidade de apoiar e nutrir aos outros”.

Para a Revista Mulheres, Camila revelou a intenção dos vídeos feitos por meio de aplicativos de celular: apresentar, “por meio de depoimentos tão reais e sinceros”, que “não suportamos mais ser tratados como cachorros sem donos e copos descartáveis”. Entre os depoimentos “reais e sinceros”, a jovem contou um fato ocorrido durante um processo seletivo. Ao final, foi aprovada nos testes, mas durante a seleção, observou comportamentos absolutamente racistas por parte da responsável pelo recrutamento. “Ela tratava as meninas de um jeito diferente. Com elas, era sorridente, agradava com palavras, dizia ‘fique à vontade’, ‘aceita uma água, um café?’. O rosto sempre inclinado para todas as nove candidatas, exceto para mim”, disse. “Ao olhar na minha direção, eu percebia um olhar de frieza, ironia e sarcasmo”, revela. Antes de iniciar os testes, a moça perguntou: “Esse curso que você fez de secretariado não é o superior não, né? Deve ser o técnico”. Detalhe: a resposta estava no próprio currículo. Isso sem falar que a mesma pergunta não foi feita a nenhuma das demais candidatas. Já no local de trabalho, a lista de tarefas que desempenhava era tão extensa que ocuparia metade desta página, deixando cansadas as leitoras. Apesar disso, a jovem, que é graduada e pós-graduada, recebia o menor salário entre todos os funcionários.


Camila Silva

Camila acredita que a realidade atual da mulher negra está marcada, não apenas pelo racismo implícito e explícito, mas também entrecortada pelo machismo, pela crença ilusória na meritocracia e pelo pensamento aristocrático. “A mulher negra é a base, e o homem branco é o topo na pirâmide, mulheres brancas e homens negros no centro dessa economia, ou seja, os piores salários do Brasil estão nas mãos das mulheres negras, fazendo com que as mesmas fiquem vulneráveis a situações constrangedoras, promovidas pela branquitude racista de nosso país, isso tudo, quando a mulher negra consegue entrar nesse mercado de trabalho”, disse.

Gira a roda. Outro triste relato não aparece no vídeo de Camila. Ele foi experienciado por Vanessa Gomes, enfermeira e doula, e ocorreu quando sua primeira filha nasceu. Na ocasião, segundo contou Vanessa, uma professora universitária, enfermeira e do sexo feminino, ao perceber que a jovem não amamentou sua filha, fez uma afirmação retórica absurda. “Mas como você não conseguiu amamentar, não eram as negras as amas de leite?”. A reação de Vanessa foi a mesma relatada pela maioria das mulheres ouvidas para essa matéria: “Me feriu a alma, mas não consegui argumentar, só chorei.

“Me feriu a falta de empatia, por ter vindo de outra mulher e sendo ela branca, me fez pensar o quanto as negras amas de leite no passado sofreram com o fato de não poder amamentar seus filhos, por ter que fazer isso com filhos das mulheres brancas. Como esse padrão de exigência da mulher negra se repete em pleno século 21”, afirmou.


Vanessa Gomes. Foto: Renata Reis - Mulheres Negras


O racismo, porém, não deixa apenas marcas psicológicas nas mulheres pretas. Ele ceifa vidas e é um dos fatores que explica a triste realidade descortinada pela pandemia do novo coronavírus: a mortalidade materna em mulheres pretas devido à COVID-19 foi quase duas vezes maior que a observada em mulheres brancas, conforme explica a professora PhD da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Débora Santos. Isso teria acontecido segundo ela, devido a processos originados fora dos hospitais.

No artigo “O impacto desproporcional da COVID-19 entre mulheres pretas grávidas e puérperas no Brasil através da lente estrutural”, foi constatado que as mulheres pretas apresentaram perfil médio de idade e morbidade semelhante às mulheres brancas, mas foram hospitalizadas em piores condições (maior prevalência de dispnéia e baixa saturação de O2), apresentaram maior taxa de admissão na UTI, ventilação mecânica e óbito. “As barreiras ao acesso à terapia intensiva parecem ter um papel importante no alto número de mortes maternas relacionadas ao COVID-19 no país”, explicou a pesquisa publicada na Oxford Academic e conduzida por Débora em conjunto com outros sete pesquisadores. O estudo analisou a planilha de domínio público do Sistema de Informação de Vigilância da Gripe (SIVEP Gripe) do Ministério da Saúde, utilizado pela vigilância epidemiológica das instâncias estaduais e municipais para inserção das fichas dos casos de Síndrome Respiratória Aguda Grave. A planilha incluiu os casos notificados no país até 14 de julho de 2020, de onde extraiu os dados de mulheres grávidas e no pós-parto, comparando as informações das classificadas como brancas ou negras.

Mulher preta, Débora é uma das mais importantes pesquisadoras brasileiras das questões étnico-raciais permeando todos os temas da assistência em saúde. Ela é irmã de Daniella Néspoli, artista plástica de Uberaba e explica que, no Brasil, a maior mortalidade materna de mulheres pretas por coronavírus implica reconhecer o racismo e o sexismo como determinantes estruturais, que moldam piores condições de vida e de trabalho. “A falta de acesso aos cuidados de saúde e oportunidades para a população preta, particularmente mulheres pretas, explica essa trágica realidade”, disse.


Débora Santos

Débora explicou, ainda, que as dimensões de raça, classe e gênero se interseccionam quando se fala da saúde das mulheres pardas e pretas. “Os reflexos são perversos, pois significam, segundo pesquisas já amplamente desenvolvidas, menos consultas de pré-natal, peregrinação para encontrar atendimento, retardamento de diagnóstico e tratamento”, contextualizou, destacando ainda as violências obstétricas que abrangem desde insultos verbais a negativa de analgesia no parto.

Vanessa Gomes, exemplo de profissional de enfermagem e doula em Uberaba, conhece bem a realidade descrita por Débora e as histórias de racismo vivenciadas por mulheres negras. Ela revelou à Revista Mulheres o que provam os dados: as mulheres que mais morrem por causas evitáveis na gestação e parto são as mulheres negras. Elas são também as que mais sofrem violência obstétrica, o que também tem intersecção com a questão de classe. “Em sua maioria por serem pobres, as mulheres negras não têm acesso a uma assistência de qualidade”, disse. Isso ocorre, segundo ela, porque a saúde da população negra vem sendo negligenciada desde sempre. “É algo cultural e estrutural na sociedade que vivemos”, disse.

Natural de Uberaba, Vanessa é filha de Solange e neta de Maria Floriscena, ambas já falecidas, e possui uma liderança natural, que atrai admiradoras. Tem orgulho da sua ancestralidade e compartilhou conosco parte das dores e feridas que marcaram a sua família. São histórias de solidão, abusos, silêncio e muita tristeza. Mas, foi ainda durante a graduação em enfermagem que Vanessa, grávida, teve acesso a uma equipe de parto humanizado e decidiu lutar para que outras mulheres tivessem o mesmo direito. “Comecei minha formação na obstetrícia, inicialmente como doula e agora, terminando a especialização, como enfermeira obstetra”, contou. “Amo o que faço”.

Ela compreende a importância do seu trabalho em uma cidade que considera “coronelista”, onde o racismo é velado e não denunciado, mas existe. “Estudo todos os dias para fornecer subsídios e informações para que as minhas filhas possam se defender desse universo racista em que vivemos. Sinto que a nossa vida é de militância eterna”, enfatizou.

Enquanto caminhava para a conclusão deste texto, entrou na roda a história de outra mulher que também atrai admiração e respeito, apesar de ainda tão jovem. Carla me chamou pra contar, entre lágrimas e engasgos de emoção, como foi a sua experiência no Thaís Nascimento Beauty Studio, salão especializado em cabelos afro e administrado pela talentosa Thais Nascimento. “Estou feliz demais, estou com o cabelo afro, foi um encontro muito bonito eu e a Thais. Contamos nossas histórias. Eu chorei. Ela chorou. Ela falou que não esperava por um encontro igual foi o nosso", disse Carla. Há poucos meses ela fora espancada pelo ex-companheiro e tem recebido o apoio de outras mulheres, algumas das quais também foram vítimas de violência.


Thais Nascimento

No salão de Thais, Carla diz ter se sentido acolhida. Não por acaso. Além de carismática e cheia de empatia, Thais Nascimento é referência de empreendedorismo negro em Uberaba. No início deste ano, a empresária foi um dos destaques do ELA PODE, evento de capacitação do Instituto Rede Mulher Empreendedora, financiado pela Google. A um auditório lotado, na Universidade Federal do Triângulo Mineiro, a jovem arrancou aplausos ao contar a sua história, dificuldades e vitórias.

Mas, o que mais chama a atenção é que, além de muito jovem, bela e competente, Thaís teve uma infância sofrida e conta que renasceu após o divórcio. Basta conversar um pouco com ela para perceber a conexão de Thais com o elemento “mineral” tal como o ensinado por Sobonfu como algo que nos ajuda “a lembrar nosso propósito e nos dá os meios para nos comunicar e compreender o que os outros estão dizendo. “Quando atendo minhas clientes, tento despertar o melhor delas, fazer com que vejam que existe um horizonte, que a dor tem um propósito que é nos fazer evoluir”, contou.

Pretta Moreno também é uma mulher marcada pela força dos elementos que formam o universo. Como atriz e arte-educadora, ela busca através da arte, levar e saudar a sua ancestralidade. “Sempre trabalhei na periferia e com o teatro tento, numa linguagem simples, levar a importância de sermos quem somos, quando uso meu corpo, minha voz e meu estudo em cima de um palco é com a certeza de que levo para as pessoas a potência da mulher preta e sua importância na sociedade”, explicou. Pretta já demonstrou seu talento de atriz e diretora recebendo prêmios em diversos festivais de teatro da cidade e tem inspirado cada vez mais outras mulheres, em uma rede de apoio, cooperação e troca, entre tantas outras que surgiram em Uberaba nos últimos anos.

Uma dessas redes de apoio é justamente o coletivo Afrontar-se do qual Agnes Maria é uma das responsáveis. Aliás, ela, que também é jornalista e estudante de história, organiza um curso online de comunicação antirracista. A proposta é ensinar comunicadores e produtores de conteúdo a fazer uma análise crítica das narrativas racistas. “Pretendo mostrar que existe um histórico comprovadamente racista, mas há outras maneiras de se comunicar que o profissional pode inserir em seu cotidiano de trabalho”, explicou.

Agnes compartilhou um pouco da sua própria trajetória como profissional da comunicação e revelou só ter encontrado direcionamento ao conhecer filosofias que representam sua forma de existir: “Minha comunicação é quilombola, se faz em conjunto, em roda como nas sociedades africanas, se pede licença à ancestralidade, por respeito aos que vieram antes de nós”, contou. “Se faz baseada na espiritualidade, porque nós apenas permanecemos em pé quando unimos os três pilares, “corpo, mente e espírito”. Ou seja, está baseada no Orixá da comunicação, Exu, que é o responsável por levar os anseios da humanidade aos pés de Orunmilá, o senhor do destino”, revelou.

Agnes não fala de religiosidade, mas de tecnologias africanas para a manutenção do existir. “Enquanto profissional, acredito que esses valores que possuem uma matriz africana podem ser inseridos em nosso contexto, desde que possamos respeitar e conhecer outras culturas”.

As palavras de Márcia chegam para encerrar a roda. Às pessoas negras, ela quer dizer: “Resistência e união. Ninguém larga a mão de ninguém. Aquilombamento. Beber na fonte da ancestralidade para buscar forças em tempos difíceis. Infelizmente, não participaremos de uma sociedade onde nossos filhos caminharão sem medo, mas lutaremos para que os filhos dos nossos filhos vivam dias melhores, assim como fizeram nossos ancestrais”.

Salve!


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